sexta-feira, janeiro 05, 2007

Galeria I


(5,15h da matina, sem doentes e sem sono)


O Sr. Eu Acho Porque Me Conheço, pendeu ao de leve a cabeça de lado e suspirou. Manteve-se estático o tempo suficiente para que os olhos presenteadores saraivassem as orbitas à procura de desvios.

Suspirou segunda vez e sentou-se hirto. Parou-lhe a dança orbital quando o joelho cruzou a perna oposta e deixou a biqueira do sapato vela, é a segunda vez que ela não me engraxa os sapatos, a apontar ameaçador a pintura pendurada da parede.

A Sra. Eu Penso Cá Fundo e Dói-me, arqueou a sobrancelha esquerda e arrecadou atrás da orelha a madeixa aloirada que lhe assomava a irritação nervosa. Só ela soube que suspirou.

Continuou um pouco dobrada pelo peso das culpas e desamores e, descolou discretamente a camisola que teimava em agarrar-se ás pregas quase simétricas por debaixo das omoplatas, a parva da empregada anda a lavar-me os soutiens na máquina outra vez, e pousou as mãos hidratadas lateralmente ao corpo no banco corrido.

A Sra. Limpe e Despache-se, enfiou num arranque brusco a pá de cabo alto no armário da parede, e ajeitou a vassoura que se lembra sempre de cair a esta hora, a mania dos tremeliques de merda que esta tem, deve julgar-se fina a bicha, agarra-te aí à pá e já gozas, e numa fungadela discreta limpou o nariz ao pano amarelo que lhe pendia do bolso que tinha uma lista branca fininha, a condizer com o colarinho que se lhe colava ao pescoço curto e brilhante.

O Sr. Sou Culto Porque Até Venho a Sítios Destes, passou lesto por entre as lajes de xisto encerado do corredor, gerando um chiado desconfortável que se agarrava ás paredes modernamente pintados de branco cinza da galeria, e entrou na sala nº IV.

Suspirou austeramente, o incomodo que é andar tantos metros no silêncio, e manteve-se de pé a olhar para a parede.

O puto Salto Porque Ainda tenho a Mola Boa, entrou de rompante a derrapar numa curva apertada a buzinar entre a falha dos dentes que a fada boa da noite levou, ou é a dos dentinhos, já não me lembro, tenho que perguntar à mãe outra vez, e ficou um bocadinho curto de boca aberta a olhar, ora para a parede, ora para os adultos silenciosos que pareciam parvos ali parados e, exclamou em tom de claxon:

- Este quadro é bué feio!

Depois de engrenada a segunda, saiu a derrapar em direcção à sala nº V numa rasante perfeita à escultura de madeira da Polinésia.

Soaram então compassados três suspiros, e sem se entreolharem, um a um, abandonaram silenciosamente a sala em rota simétrica à sala nº VI.

17 comentários:

  1. Esta galeria-enfermaria é muito boa, JP. às 5h da matina ou quando queres, escreves lembrando-me Al Berto, sei lá, moça, deixas-me à toa. e isto não é daquelas coisas que se dizem sempre. é coisa de Tipa Que Pensa Que Já Leu Muita Coisa Para Reconhecer Às Vezes O Que É Bom.

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  2. é a noite pá.
    a noite deixa-me assim sempre um bocado apalermada.
    e nem sempre tenho papel.
    e pá, e este comento vindo de ti ainda me deixa mais Baralhada Deixa-me Ir Ver Quem é o Al Berto Estúpida de Ignorância

    obrigadinho pá!
    ;o)

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  3. tem realmente alguns traços comuns a Al Berto; no entanto recordou-me o ensaio sobre a cegueira, não pelo texto em si, mas pelo facto dos nomes dados aos intervenientes...

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  4. O Al Berto disse "Elevemos a literatura como ficcção inseparável do vivido.A extrema lucidez e a ternura." que aplicaste primorosamente neste texto. Numa galeria também os visitantes expõem as suas vidas para quem tiver a paciência de os olhar.

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  5. Minhas queridas
    Parei uns momentos e fui dar uma espreitadela pela net no tal Al Berto. Li uns trechos curtos e não cheguei à conclusão se o Sr. escrevia parecido comigo ou se eu escrevia a lembrar o dito...
    Mas se vocês acham, quem sou eu para duvidar, embora lamente e confesse a minha total ignorância no escritor...mea culpa...
    E já que estamos em marés de confissões, declaro vergonhosamente que O ensaio sobre a cegueira, é mesmo cegueira, porque embora já tenho papado bastantes do Saramago, esse ainda não li.
    Ser comparada ou fazer lembrar tais ilustres, leva-me a pensar através do meu lado Maria Que Tem Por Norma Ser Desconfiada, se isso é bom ou mau. É que ser acusada futuramente, de seguir linhas de quem quer que seja não me soa bem.
    Este pedaço foi escrito tardiamente, em completa insónia delirante. Não seguiu normas nem princípios, como todos os outros aliás. Surgiu do nada, ou do lado do Teco que é um gajo meio esquizofrénico. O Tico vai-se safando e compensa.
    Iva, desde pequena que aplico nomes dados aos intervenientes. Pancas, claro.
    Mas agradeço de coração as vossas palavras.
    Escreve a Maria que:
    Numa galeria também os visitantes expõem as suas vidas para quem tiver a paciência de os olhar.
    Pois fica sabendo que é um dos meus piores vícios. Olhar e interpretar. No silêncio de ver ouve-se tanta coisa.
    Beijos
    ;o)

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  6. bela foto que tiraste JP.

    Mas não te esqueças que todo o olhar é interpretação. E essa... tem sempre a ver com o nosso lado de dentro.
    Que está bem escrito tu já sabes, não é a primeira vez que to dizem...
    (muda só os acentos dos às, quando têm de ser graves e tu teimas nos agudos, que teimosia, mulher!)

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  7. Querida Elipse, toda a interpretação é subjectiva. Porque somos nós e de dentro de nós que a "advinhamos". Na escola dos grandes aprendi isso e muito raramente me esqueço ;0)

    Já vou mudar os acentos. E já me podias ter disso isso antes, não é verdade? É que sou teimosa mas sei dar o braço a torcer...

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  8. "Gaija", esforcei-me para não perceber patavina, mas os nomes das criaturas não deixaram :D

    E, raios!, a minha insónia nunca me dá destas coisas...

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  9. No fundo, no fundo... era bem pior com doentes e com sono! :)

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  10. Hipatialudovina, cada um tem o nome que merece, ou que vai merecendo
    ;o)

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  11. Lá isso Gasel, vê-los a dormir e eu sem puder fechar a pestana é uma coisa muito pouco democrata, ah pois é!
    ;)

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  12. de sala em sala e de suspiro em suspiro cá fico eu também.... pá este post dava uma bela curta-metragem, já estou a imaginar um ambiente escuro e silencioso que só se torna colorido qdo aparece o puto Salto Porque Ainda tenho a Mola Boa...
    ... mas isto sou eu, a Senhora Que Não Sabe se Percebeu Bem Mas Que Percebeu O Que Percebeu! ;)

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  13. Mas tu percebeste muito bem,Senhora Que Não Sabe se Percebeu Bem Mas Que Percebeu O Que Percebeu,e pensares numa curta-metragem dessa maneira é super catita,pá!
    ;o)

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  14. não pretendia conferir à tua escrita, um cunho a roçar o plágio; ela é única e tua e, ponto final; não sou ninguém para colocar rótulos na escrita de quem quer que seja, mas é como diz a Elipse, por vezes basta uma só palavra para que façamos uma analogia e recordemos frases ou lugares e até gestos...

    aconselho vivamente a leitura do Ensaio do Saramago, que é para mim, até agora, o seu melhor livro ;-)

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  15. Soslayo
    a hora era propria para a visita à galeria. A mulher da limpeza não tem hora de dormir cá no meu sitio.
    E já não era hora natalicia, era hora de ver arte.
    beijoca

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  16. ninguém,mas quem é que falou em plágio?! O meu comentário apenas foi:
    -É que ser acusada futuramente, de seguir linhas de quem quer que seja não me soa bem.
    É um bocadinho diferente, certo?
    E depois fiquei um bocado confusa. A ninguem é a mesma pessoa que a Ivamarle?
    E vou seguir o teu conselho e ler o tal ensaio evidentemente,obrigado.
    ;o)

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