quarta-feira, junho 07, 2006

Leituras


Imagem daqui

Discutia-se em comentários de quem era a culpa pela não vontade ou inexistência de hábitos de leitura nas camadas mais jovens. E há sempre alguém, que atribui as culpas ora para quem pare ora para quem cria. Como se a culpa de não gostar, ou ser calão e madraço, ou ignorante, ou oportunista, ou apenas simplesmente básico e buçal por inapetência ou puro relaxe, ser sabiamente culpa de quem não mostra como se faz. Constroem-se frases na certeza básica, de ser apenas a génese ou o copiar de outrem, o trunfo final que nos torna mais ou menos aptos a manter hábitos consistentes de leitura – que esta merda de ler Marias, Caras e Nova Gente, no cabeleireiro e consultórios não conta.
Sou filha de pais considerados inaptos para leitura. Um lia jornais desportivos, outro a Crónica feminina quando calhava. Jaziam nas estantes colecções completas do Círculo de leitores, lombadas certinhas e ordenadas por cores, virgens impolutas.
Até um dia.
Aos dez anos li o Guerra e paz, e confesso que nem metade percebi. Não tive alguém que me dissesse que não era adequado para a minha idade. Voltei a lê-lo aos quinze como quem descobre a pólvora. Tinha sempre uma lanterna de bolso debaixo do colchão, que me tornava invisível debaixo dos lençóis a partir das vinte e três horas. Fui lendo tudo o que era Eça, Nietzsche, Saramago, Kafka, Eco e Virgílio ou Arthur Conan Doyle e, fui descoberta ás duas da manhã por gargalhar sem contenção. Levei variadíssimas palmadas pela insurreição. Sei, que apenas eu lhes coloquei a mão sem ser para limpar o pó.
Agora tenho dois filhos, e a estante cheia de livros usados e manipulados. Alguns com anotações pequenas de lado, outros apenas sublinhados a lápis devagarinho. Uma, devora livros, revistas e publicidade da caixa onde se lê, publicidade aqui não, obrigado. Só não lê ás refeições, tal como não mastiga de boca aberta, nem apoiada sobre o braço, e pede licença para se levantar. O outro, já nasceu semi-inapto. Estar parado a ler, é um desperdício incrível de tempo, dá-lhe uma sonolência incoercível, lembra-se alegremente do tempo em que lhe lia ao deitar e que me fazias aquelas vozes todas muito giras, lembras-te mãe? Dedica-se com afinco aos manuais escolares, a exercitar todo o que é músculo, o resto é seca.
A ambos foi estimulado e incutido o hábito de leitura.
Ambos tropeçam em livros e revistas que se espalham pela casa, e que se leêm.
Uma lê e gosta. O outro adormece a babar-se para a Introdução. Deve ter saido aquela “parte genética” dos livros arrumados por ordem decrescente de cores quentes em dégradé.
Claro que a culpada sou eu.
Básico e evidente.
Não é clarinho como água?

17 comentários:

  1. Genial, JP! Parte I e parte II. E acho que em ambos os capítulos, "quando eu era pequenina", e "e agora que tenho dois rebentos", me revejo. É verdade que nesta discussão se têm/nos temos esquecido do ADN :)

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  2. Clarissimo! ahahahahahah! Mas não deixa de haver culpas a atribuir.

    Eu, por exemplo, devoro livros e não consigo achar piada aos nossos Eças, Pessoas e afins. É o estilo da escrita, reconhecendo-lhes o mérito e a qualidade. A questão é que foi isso que me deram a ler na escola. Por acaso eu também já tinha o gosto pela leitura e a esses li-os pelos apontamentos Europa-América só mesmo para ter positiva..... Mas há casos em que as pessoas ainda não descobriram o gosto pela leitura, ainda nada deu o click e de calha de não gostarem daqueles que são obrigados a ler está o caldo entornado.... não me parece que haja uma solução milagrosa. A parte subjectiva é muito forte, tal como acabaste de provar! ;)

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  3. Mrf, sua aproveitadora ;-)
    Toma beijo

    Patioba,claro que existem sempre hipotéticas culpas. E garanto-te que as coisa não são assim tão lineares. Mesmo que utilizes apenas preto e branco, passado um tempo descobres nuances de cinzento nas pontas. E nem só de Eças vive o homem, felizmente. Tanta coisa grata que podemos ler por aí.E concordo com a versão do click. Um dia descobrem que afinal gostam mesmo de ler :-)

    Paulo
    bem vindo à tasca, e obrigado
    :-)

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  4. Fico sempre satisfeito quando aparece alguém para arcar com as culpas. Mas eu que considero a leitura uma doença, teria que acrescentar dois pontos à questão. Primeiro, nada é definitivo. Embora improvável, amanhã as opções podem ser ao contrário. Segundo, nem sempre leitura é ‘literaleitura’. Podemos passar por fases em que a objectividade é tão grande que não há entendimento para a multidão de sentidos que um bom texto pode oferecer, nem para transformar em ‘três dê’ com sonoridade ‘cinco ponto um’ a linearidade pachorrenta da linha a linha. Terceiro, a leitura, o acesso ao texto e às suas dificuldades e aos seus prazeres, é cada vez mais um acto feminino. Havendo maneiras mais fáceis de preencher o tempo um homem não se esforça, enquanto a mulher – e aí sim poderá haver alguma genética – colabora mais na dureza da criação. Quarto, era o mais importante mas varreu-se-me e de qualquer maneira tinha dito que eram só dois pontos… ;)

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  5. Nada é definitivo como dizes, Ikivuku, e a graça está mesmo nisso. Imagina a seca do ser sempre igual.Depois o estar semi-inapto, não significa que não se torne apto,ou o apto de repente inapto.Aqui, e neste caso especifico a fase objectiva de conseguir boas notas,é superior`a fase 3D do gozo transportado para outros planaltos. Há quem goze antes, e quem goze depois. Opções.
    A genética, quer queiras, quer não estará sempre implicita. Não somos iguais, por muitos soutiens que se queimem. A dureza da criação foi vossa, afinal foi a voçês que o gajo sacou a costela ;-)
    No geral,concordamos, e escreveste para caraças pela primeira vez nos meus comentários.
    ;P

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  6. A minha culpa, era piada meu amigo Soslayo.Se eu me sentisse culpada,achas que vinha para aqui deletar-me? Ficava muda, armada em senhora que tudo tem perfeito.
    E os meus pais não eram novos ricos, a minha mãe é que tinha um certo gosto estético pelas lombadas ;P, embora concorde contigo na existência de gente que compre livros a metro.
    Beijinho

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  7. Muito bom o seu texto. Revejo-me em tudo; nos livros do Círculo dos Leitores meticulosamente arrumados na prateleira com as lombadas encadernadas da mesma cor dos sofás; na lanterna escondida debaixo dos cobertores; e nos problemas de leitura dos rebentos.Aqui o problema multiplica-se por três e até agora só escapa um (o mais novo... ainda há esperança). O meu filho do meio nem sequer queria aprender a ler, (para quê mãe tu lês-me umas histórias tão giras?)Um desespero.
    E a culpa é minha? Bem, há 12 anos que os professores me andam a tentar convencer disso.

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  8. Os profes, os super-letrados,os enfastiados,os iluminados,os que não têm filhos,os que não criam filhos, e outros que tais,gostam sempre de arranjar um bode espiatorio.
    Oh pra mim, béeeee!!!
    Obrigado pela visita Paninhos,já lá fui cuscar, e gostei :-)

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  9. Ler-lhes histórias ao deitar. Sempre.
    O resto está nas mãos dos deuses que os conduzirão, ou não, até às prateleiras.

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  10. Pois abs, e foram lidas durante anos. Agora não me estás a ver, a convencer um marmanjo de quase 18 anos, a ouvir histórias na cama...e daí, se calhar vou pedir à namorada dele que lhas leia.
    A outra de 11 não precisa,mas isso já tu leste ;-)

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  11. Pois eu acho que a culpa é dos professores do teu filho. Está na cara, não pode ser de outra maneira.

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  12. Nada é a preto e branco. Mas nas cabecinhas de alguns iluminados, o cinzento nunca entrou :S

    Lê isto da Jacky. Acho que vais gostar: http://amorizade.wordpress.com/2006/06/02/plano-nacional-de-leitura/

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  13. Passei muitas horas que recordo com nostalgia embrenhada em leituras pouco direccionadas para a minha idade. Não me fizeram mal. Ou talvez tenham feito. Porque será que sonhar é melhor que vegetar? Porque será que ler é melhor que chutar as pedras do caminho? Porque será que nós teimamos adolescentemente em sermos melhores porque diferentes dos outros? Porque será que secretamente aspiro a que o meu rebento venha a gostar tanto de ler quanto eu? Não me bastará porventura que ela venha a gostar de ser feliz? E que felicidade tirará ela dos livros senão muitas vezes a angústia de não poder saltar para dentro deles e vivê-los?

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  14. Se não escolhermos para os nossos filhos aquilo de que gostamos, vamos escolher o quê? Se não formos nós a influenciá-los, estamos à espera que seja quem? Porquê esta culpa de os querermos levar para o lado que consideramos certo? Porque aceitamos com tanta docilidade a porcaria que lhes atiram para cima? Porque achamos bem que eles encarneirem na 'liberdade' que o marketing televisivo lhes oferece, em nome de uma educação livre de 'pressões traumatizantes'? Porque abdicamos de propor alternativas à banalidade? Porquê o sentido de derrota? Estamos assim tão desesperados?

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  15. claro que a culpa não é tua! é dos incompetentes dos profesores!!

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  16. Emiéle, deixa lá as gralhas, que na verdade nem lhe ligo,isto não é um testamento, antes um testemunho,de que gosto muito aliás.
    E mete sempre a colherada por favor.
    é a escrever que a gente se entende;-)

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